O diálogo entre anarquistas e ancaps (anarco-capitalistas) costuma ser marcado por muitas polêmicas. Enquanto os últimos defendem um "livre-mercado sem Estado", os anarquistas clássicos rejeitam tanto o Estado quanto o capitalismo. Afinal, não basta acabar com o Estado para alcançar a liberdade — é preciso desmontar todas as hierarquias, incluindo a tirania da propriedade privada. Abaixo, respondo aos argumentos levantados por críticos ancaps ao post Porque ancaps não são anarquistas, esclarecendo pontos centrais do anarquismo.
"Anarquismo é só ausência de Estado? Então qualquer coisa sem governo é anarquia?"
Não. Anarquismo não é um vazio institucional, mas um projeto político que rejeita todas as formas de dominação, sejam estatais ou econômicas. A ideia de que "qualquer ordem sem estado é anarquismo" ignora que a propriedade privada, por exemplo, é uma estrutura hierárquica. Se uma corporação controla terras, fábricas e recursos essenciais, ela exerce poder coercitivo tão opressivo quanto um Estado. Para os anarquistas, liberdade pressupõe gestão coletiva dos meios de produção — não sua apropriação por indivíduos.
"Sem propriedade privada, como definir quem usa o quê? Não dá nem para comer uma maçã!"
A crítica confunde posse (uso direto) com propriedade privada (controle exclusivo, mesmo sem uso). Anarquistas defendem que recursos devem ser usados por quem deles precisa, não acumulados por donos. Uma maçã colhida por você é sua posse legítima; um pomar inteiro, cercado e explorado para lucro de um latifundiário, é um roubo. Sistemas de autogestão — como assembleias locais ou cooperativas — podem mediar conflitos sem hierarquias, garantindo acesso equitativo. A Revolução Espanhola de 1936, por exemplo, mostrou que fábricas e terras coletivizadas funcionam sem patrões.
"Hierarquias são naturais. Até na família existe um chefe"
Hierarquias não são leis da física — são construções sociais. A família patriarcal, assim como empresas capitalistas, é fruto de uma cultura de dominação. O anarquismo propõe relações horizontais: sindicatos autogestionários, redes de apoio mútuo e comunidades onde decisões são tomadas coletivamente. Nem mesmo a "eficiência" justifica hierarquias: estudos mostram que empresas cooperativas têm produtividade igual ou superior às tradicionais, com menos desigualdade.
"Igualdade é tirania. Pessoas devem ter resultados diferentes"
Anarquistas não buscam uniformidade, mas equidade. Defendemos que ninguém deve morrer de fome enquanto outros acumulam fortunas. A "liberdade" ancap/libertária é uma ilusão: sem acesso a terra, moradia ou saúde, o trabalhador é obrigado a vender sua força de trabalho para sobreviver. Isso não é liberdade — é coerção econômica. Garantir direitos básicos universalmente (como propunha Kropotkin em "A Conquista do Pão") não anula diferenças individuais; apenas permite que todos tenham autonomia para prosperar.
"Monopólios só existem por causa do Estado. No livre-mercado, a concorrência resolve tudo"
Historicamente, o capitalismo nasceu graças ao Estado: cercamentos de terras na Inglaterra, escravidão nas colônias e patentes são exemplos de como o poder político cria monopólios. Mesmo sem Estado, corporações usariam milícias privadas para controlar recursos — como já ocorre em regiões dominadas por cartéis. O "livre-mercado" libertário seria uma distopia onde os mais ricos contratam exércitos particulares, recriando um pseudo-estado. O anarquismo, ao contrário, propõe a socialização dos recursos, impedindo que poucos acumulem poder.
"Como resolver conflitos sem polícia e tribunais? O caos seria inevitável!"
Tribunais e polícia privada (como propõem ancaps) perpetuam a lógica do mais forte: quem paga mais, tem mais "justiça". Já o anarquismo defende autodefesa coletiva e mediação comunitária. Experiências como a Comuna de Paris, as comunidades zapatistas no México ou a Revolução em Rojava mostram que é possível organizar segurança e justiça sem hierarquias. Quando as próprias comunidades gerem conflitos, a violência sistêmica diminui — afinal, ninguém quer guerrear contra seus vizinhos.
"Contratos livres não são coerção. Se alguém concorda, é justo"
Sob o capitalismo, contratos raramente são livres. Um trabalhador que "aceita" um salário miserável o faz por necessidade, não por escolha. A verdadeira liberdade exige que as necessidades básicas sejam garantidas, eliminando a coerção econômica. Além disso, contratos não podem violar a autonomia coletiva: ninguém tem o direito de "contratar" a destruição de um rio ou a exploração de crianças, por exemplo.
Conclusão: o anarquismo é mais realista (e radical) do que você imagina
A crítica anarco-capitalista parte de uma premissa equivocada, tida como natural: acreditar que hierarquias são inevitáveis. Mas a história está repleta de exemplos de sociedades sem Estado e sem capitalismo — desde povos indígenas até experiências revolucionárias. O anarquismo não é uma utopia: é um chamado à ação direta, à construção de comunidades baseadas em ajuda mútua e à recusa de todas as formas de opressão.
Enquanto o libertarianismo troca o Estado por corporações, propomos um mundo onde nenhuma pessoa seja dona de outra — nem através de governos, nem de contratos. A liberdade não é um produto à venda; é um direito coletivo a ser conquistado.
Aos que dizem "isso nunca funcionaria", lembro: o capitalismo está destruindo o planeta e o Estado mantém bilhões na pobreza. Que tal tentarmos algo novo — ou melhor, algo tão antigo quanto a cooperação humana? Se você realmente quer o fim do Estado, reflita sobre o que leu até aqui.